MUCB

“Fico pensando se algum dia deixará de ser eles e nós…”

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
HISTÓRIA, TEORIA E CRITICA DE ARTE
Aluna: Izis Tamara Mineiro de Abreu

Caríssimo Jaci (Santos Cordeiro)

Escrevo-te num momento muito difícil para nossa gente. Desejava te proporcionar alguma alegria ao informar que coloquei uma de tuas obras em exposição novamente. É apenas a segunda vez que ela é mostrada ao público desde que a criaste em 1978. Achei que seria importante dar-te esse retorno após certo período de apagamento. Já são 17 anos desde que retornaste para o Orum. Mas infelizmente não trago apenas boas noticias.

No ultimo domingo sofremos mais um grande golpe do Estado. Uma família foi fuzilada pelo exército com mais de 80 tiros . Estavam no carro cinco pessoas de uma mesma família. Evaldo, que era músico, morreu na hora.

Um outro homem que estava na rua e se atreveu a tentar ajudá-los a sair do carro também foi alvejado e está em estado grave no hospital. Nosso “presidente”, o ministro de justiça e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional relativizaram o fato dizendo que foi um “incidente” ou uma “bobeada” do comandante daquele batalhão. Como se alvejar corpos negros não fosse rotina para a policia militar, em todo o país, e para o exército. Você sabe bem, não é Jaci, como são os incidentes da policia militar? Sabes bem como eles nos tratam. Quando somos moradores de favela então… A julgar pela maneira como tua mãe morreu.
Está estabelecido, o lugar que ocupamos na sociedade define as relações de poder às quais estaremos submetidos.

O governo está nos matando e isso parece não importar à sociedade. Por isso, nos dois últimos anos, tenho me dedicado a tentar compreender o porquê. Percebi que a história das imagens sobre o negro guarda respostas sobre o momento histórico em que fomos situados em uma escala inferior de valoração; tenho investigado por meio de imagens da arte como e porque o negro se tornou essa ameaça que justifica 80 tiros de fuzil seguidos de uma apatia social inadmissível dependendo da cor da pele das vitimas.

Mas eu te pergunto: Por quê? Por que a população não é solidária com nossa causa? Porque a empatia diante do sofrimento de pessoas brancas não é a mesma no caso do sofrimento de pessoas negras a ponto de mobilizá-los numa luta junto a nós? Está aí a história do holocausto judeu para comprovar. Todo o mundo se solidariza com a tragédia ocorrida com os judeus. Há uma consciência global de que o holocausto jamais deve ser esquecido para que nunca mais ocorra. Inúmeras politicas de reparação foram criadas como forma de atenuar o trauma e a divida das nações para com o povo judeu. No entanto,a solidariedade não parece ser a mesma no que diz respeito à diáspora e o holocausto negro, à violência colonial que vitima nosso povo até hoje.

A sociedade acha que é preciso esquecer a escravidão. Dizem que devemos virar a página. Achas certo isso Jaci? Tu que sentiu na pele os efeitos do racismo, do privilégio branco que, aliás, a maior parte da sociedade se recusa discutir. Quantos obras tiveste que vender a preço abaixo de mercado por esculpir em restos de madeira tomados de cupim? Quantas vezes dependeu de ferramentas emprestadas para criar?

Não sei se eles não aceitam ou se lhes falta conhecimento mesmo. A compreensão de que as desigualdade sociais resultam de privilégios oriundos do processo de desenvolvimento do sistema liberal moderno/colonial. Viabilizado pela exploração de corpos negros, pela sua transformação, como bem aponta Achile Mbembe, em homem-moeda, homem-metal, homem-objeto. E o mais importante, pela negação de sua humanidade. Pois o que eles não sabem é que a fantasia do humanista, do homem civilizado, racional, ou seja do Ser Branco só foi crível com a criação de sua antítese: o Ser Negro, primitivo, irracional . Aquele que precisava ser conduzido do estado de natureza selvagem para a civilidade.

Quem melhor que o humanista para isso não é mesmo Jaci? Mas veja bem. Uma vez os povos negros conduzidos ao estágio civilizatório o que justificaria a continuada colonização de suas terras e a escravização de seus corpos?

Tudo se resume a luta pelo poder meu caro. Pelo domínio econômico e politico. A solução por eles encontrada foi declarar nossa inferioridade física, moral e intelectual. Percebe? A ciência nos transformou em sujeitos de raça, em seres estigmatizados pela cor. A produção epistemológica do ocidente têm definido nossos modos de ser e existir durante séculos. Uma episteme responsável pela atribuição e difusão de uma ontologia da diferença a cerca de homens e mulheres negros. Diferença colonial, segundo o pensamento decolonial de Boa Ventura Santos, que parece ter moldado o imaginário social sobre os sujeitos negros e determinado as relações étnico-raciais da forma como se dão hoje.

Diga-me Jaci, achas que minha pesquisa tem alguma relevância? Será que ela é capaz de contribuir para alguma transformação social?
Fico pensando se algum dia deixará de ser eles e nós.

Porto Alegre, 14 de abril de 2019.

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